Na raiz do caos está a arquitetura institucional da
segurança pública legada pela ditadura, que passou intocada pela transicão
democrática, encontrou abrigo na Constituição e permanece excluída da agenda
pública
Mais uma vez, o Brasil discute segurança pública na crise. A Bahia está
convulsionada e a consciência nacional contempla o enigma sob fogo cruzado.
PM em greve, selvageria nas ruas, saques, medo, mortes. Cenário para
músculos e paixões, pouco afeto à inteligência. Na crise, quem manda é a crise,
com sua dinâmica inconstante e imprevisível. A questão corrente é: o que fazer,
agora? Quando o doente está na UTI, a urgência exige mobilização de todos os
recursos disponíveis para salvá-lo. Não é momento para seminários e filosofia.
Entretanto, será preciso atravessar o dia seguinte com os olhos postos no
futuro e a pergunta decisiva: o que fazer para evitar crises cíclicas desse
porte? O que as motiva? Como reverter suas causas? Já houve dezenas como esta,
nos últimos vinte anos.
O governo estadual denuncia o vandalismo da insurreição armada e tenta
reafirmar sua autoridade. A União presta a assistência possível na emergência,
deslocando tropas e o ministro da Justiça. A categoria rebelada denuncia
salários indignos e condições de trabalho aviltantes. Critica a omissão dos
poderes públicos. Aponta a falta de perspectivas, na medida em que o Congresso
se esquiva e não vota a PEC-300, que criaria um piso salarial nacional, com
base no que paga o DF. Parlamentares e governos estaduais contra-argumentam,
indicando as limitações orçamentárias: a magnitude da reivindicação corporativa
expressa na PEC é tal que, aprovada e aplicada, quebraria os Estados.
O que dizer sobre esse vozerio desencontrado, cheio de som e fúria?
Todos têm razão; ninguém tem razão. Explosões violentas são inaceitáveis;
condições trabalhistas ultrajantes, também. Alternativas são indispensáveis,
mas têm de ser realistas e viáveis. Quem as negociará, em nome da massa
policial? Quem gritar mais alto na praça pública? Quem comandar nas ruas um
movimento que chantageia o governo e o obriga a ceder ao lider de ocasião, sem
organicidade representativa? Quem dispuser de carisma e audácia para sensibilizar
assembléias, pavimentando carreiras político-partidárias posteriores, sem
qualquer compromisso com a reforma da segurança no país e os mais elevados
interesses da sociedade e das instituições? Essa tem sido a via brasileira para
a selvageria despolitizada e o oportunismo de demagogos, que não enxergam um
milímetro além do corporativismo mais estreito, fazendo eco à insensibilidade
das autoridades e à apatia governamental. A alternativa a esse mundo desastroso
é a sindicalização, não dos servidores das PMs tais como elas existem, o que
seria impraticável e inconstitucional, mas dos membros de uma organização de
novo tipo, regida por novos marcos constitucionais. Quando trabalhadores
sentem-se oprimidos, não encontram canais de participação, não têm acesso a
instrumentos de associação e representação, a energia represada transborda e se
converte em combustível de explosões que produzem efeitos negativos para a
sociedade, governos e a própria categoria profissional. Sem sindicatos, com
associações semi-clandestinas e mutiladas, os trabalhadores se dividem, não
acumulam experiência, não estabelecem negociações regulares, não amadurecem,
politicamente, e terminam envolvidos em movimentos disruptivos nos quais
destacam-se os mais impetuosos, cuja liderança negativa acaba sendo fortalecida
por governantes acuados, os quais, tendo negligenciado entendimentos orgânicos,
cedem às circunstâncias e recuam, na emergência.
Mas há pressupostos a esclarecer para que minha análise seja
compreendida.
Na raiz do caos está a arquitetura institucional da segurança pública
legada pela ditadura, que passou intocada pela transicão democrática, encontrou
abrigo na Constituição e permanece excluída da agenda pública. O artigo 144
atribui, em matéria de segurança, grande responsabilidade aos estados e suas
polícias, cujo ciclo de trabalho é, irracionalmente, dividido entre militares e
civis; confere papel apenas coadjuvante à União e esquece dos municípios, na
contramão do que ocorre com as demais políticas públicas. As PMs são definidas
como força reserva do Exército e submetidas a um modelo organizacional
concebido à sua imagem e semelhança. Por isso, têm até 13 níveis hierárquicos,
uma estrutura fortemente verticalizada e rígida, e regimentos disciplinares
próprios, cuja constitucionalidade é, aliás, no caso das PMs, mais do que
duvidosa. A boa forma de uma organização é aquela que melhor serve ao
cumprimento de suas funções. As características organizacionais do Exército
atendem à sua missão constitucional, porque tornam possível o “pronto emprego”,
qualidade essencial às ações bélicas destinadas à defesa nacional. Nesse
contexto, entende-se o veto à sindicalização.
A missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente
diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias é prover segurança
aos cidadãos, garantindo o cumprimento da Lei, ou seja, protegendo seus
direitos e liberdades contra eventuais transgressões que os violem. No
repertório cotidiano das atividades das PMs, confrontos armados que exigem
pronto-emprego representam menos de 1%. Não faz sentido estruturar toda uma
organização para atender a 1% de suas ações. Para estas, bastam unidades
especiais, configuradas para tais finalidades. O funcionamento usual das
instituições policiais com presença uniformizada e ostensiva nas ruas, cujos
propósitos são sobretudo preventivos, requer, dada a variedade, a complexidade
e o dinamismo dos problemas a superar, os seguintes atributos:
descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no processo
decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos humanos e dos
princípios internacionalmente concertados que regem o uso comedido da força;
plasticidade adaptativa às especificidades locais; capacidade de interlocução,
liderança, mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que
mobilizem outros segmentos da corporação e intervenções governamentais
inter-setoriais. Idealmente, o(a) policial na esquina é um(a) micro-gestor(a)
da segurança em escala territorial limitada com amplo acesso à comunicação
intra e extra-institucional, de corte horizontal e transversal.
Engana-se quem acredita que mais rigor hierárquico, mais centralização,
menos autonomia na ponta e regimentos mais duros garantem mais controle
interno, menos corrupção, desmandos e brutalidade. Se fosse assim, nossas
polícias militares seriam campeãs de virtude. Pelo contrário, sacrificamos a
eficiência no altar da disciplina para colher tempestades e saldos negativos em
todos os fronts.
Não há nenhuma razão para que as PMs copiem o modelo organizacional do
Exército, o que não as impediria, necessariamente, de adotar elementos da
estética, da ética e da ritualística militar. Nesse novo contexto, a
sindicalização tornar-se-ia legal e legítima. Quem teme sindicatos e supõe
possível manter a ordem reprimindo demandas dos trabalhadores, proibindo sua
organização, não compreende a história social e as lições que as lutas
trabalhistas nos ensinaram. Não entende que o veto à organização provoca
efeitos perversos para todos e planta uma bomba de efeito retardado sob nossos
pés.
Eis aí, portanto, mais uma razão para rever o artigo 144 da Constituição
e para buscar um consenso nacional mínimo em torno de uma arquitetura
institucional alternativa e de um outro modelo policial. Em benefício dos
policiais e da eficiência na provisão de segurança pública, que interessa ao
conjunto da sociedade, sobretudo aos mais pobres e vulneráveis.
Eduardo Soares (Antropólogo, escritor, ex-secretário nacional de
segurança pública)
Fonte:
LUIZ EDUARDO SOARES - 19/04/2014
Nota-se que há pessoas no governo ou que passaram por lá, que conhecem o âmago da questão da segurança pública no Brasil. O autor do texto fala como propriedade sobre a matéria, mas pelo visto não foi capaz, não se sabe porque, de encaminhar a solução possível, pois nem sempre o ideal é possível.
ResponderExcluirO autor demonstra conhecer profundamente o problema e delineia com objetividade a solução ao indicar no texto da CF/88, a origem do caos que se vive na segurança público no Brasil.
Enquanto não houver coragem e decisão política para afastar do texto constitucional as amarras - resquícios ditatoriais - sobre a matéria, a discussão sobre ela será ambígua, periférica e emergencial, determinando a sua permanência na ordem do dia dessas entidades representativas e movimentos de caráter legal duvidoso, dirigidos por líderes impetuosos, insensatos e às vezes, inconsequentes, que buscam resultados imediatos e não a solução possível e viável que assegure a paz e a harmonia no seio das corporações militares no Brasil, para que possam desempenhar, com a efetividade necessária, o seu papel institucional que é entregar ao cidadão de bem a sensação de segurança, no sentido mais amplo, como faziam há bem pouco tempo.